2/09/2005

Recife (parte 3)

Se existe uma marca no Carnaval de Olinda/Recife é o espírito de diversão. Como qualquer Carnaval que se preze a máxima é correr atrás da mais pura diversão, seja só acompanhando o Carnaval, seja dançando, seja seguindo os blocos, vendo os shows, se fantasiando. Repito mais uma vez é se permitir, porque em terras pernambucanas é permitido. Isso me lembra algumas coisas que dá para se observar no entrudo pernambucano. É impressionante como a forma como tratam o assunto de drogas na cidade não é hipócrita, a ponto de ter uma placa no carnaval recomendando que se for fumar maconha não dirigir depois, o mesmo no panfleto oficial distribuído pela prefeitura. Engraçado que ao mesmo tempo, há um conservadorismo em se tratando de opções sexuais. Ao ver dois rapazes se beijando, um policial se aproximou e mandou que parassem de se beijar, que se quisessem fizessem aquilo em um lugar escondido.

No domingo, no Rec Beat, quem abriu a festa, ainda no fim da tarde, foi o bloco Quanta Ladeira, uma junção de artistas renomados locais e alguns nacionais que brincam através de paródias de músicas conhecidas, desde sucessos nacionais até hits do carnaval pernambucano. Estavam lá Lenine, Lula Queiroga, Silvério Pessoa e vários outros esculhambando todo mundo presidente, ministro, governador, o prefeito (que estava presente), artistas e meio mundo de gente, inclusive eles mesmo.

Cantavam coisas como “Deixa o boeing me levar/ boeing leva eu (+2X)/ são vocês que pagam a conta, mas o avião é meu”, em ritmo de Zeca Pagodinho. “Você diz que lula bebe/ lula bebe sim sinhô/ também nessa porra quem não bebe/ não dá nem pra ser vereador.”, em ritmo de marchinha. "Pra comer seu cú falta uma polegada", brincando com "Meu Maracatu pesa uma tonelada" da Nação Zumbi e por ai a fora. Aquele tipo de brincadeira sem graça atése fora do espírito do Carnaval, mas tudo a ver com a festa.

O domingo seguiu com o grupo Samba de Véio apresentando seu samba de roda tradicional e de alta qualidade, com uma multidão (50 pessoas) em cima do palco. Já com um público maior o La Pupunã do Pará botou todo mundo para dançar ao som de carimbó e guitarradas, ritmos típicos da terra deles e que agrada a quase todo mundo. Praticamente todo instrumental, a banda ainda misturou carimbó com surf music, muito massa. O rock-pop da Ludov agradou aos fãs, mas eu continuo a achar a banda sem muita graça.

O Mombojó era sem dúvida o show mais esperado da noite. Em ritmo de Carnaval, a banda entrou toda fantasiada. O som de início não ajudou, mas aos poucos eles foram tomando conta da situação e botando todomundo para cantar e dançar as belas composições do grupo, além de covers perfeitos para ocasião "Aurora", de Mário Lago e "Balança o Saco", aquele clássico: "balança o saco, balança o saco, balança o saco de confete e serpentina/ eu vou cair de língua, eu vou cair de língua, eu vou cair de língua num sorvete de limão/ tá todo mundo dando, tá todo mundo dando, tá todo mundo dando volta e meia no salão". Num dos melhores shows do festival, terminaram o show mais que consagrados cantando "Esse é o reino da Alegria". Quem duvida?

Muitos reclamaram que Otto não era o nome ideal para fechar uma noite de Rec Beat. Pode até não ser, mas o cara é bom, e agora mais plantado (claro, que para o que ele já fez em cima do palco) desfilou uma série de suas belas composições. Com uma banda de primeira, liderada por Ganjman do Instituto, o show foi concentrado nos dois primeiros discos do bicho-que-pula. E Otto é um compositor de mão cheia, suas boas canções ganham mais vida com as bem dosadas intervenções eletrônicas e a alta carga percussiva. Otto é talvez o responsável por uam nova música brasileira, foi ele quem fundou um estilo de fazer músicas herdeiras de ciranda, samba e coco, inserindo a eletrônica nisso sem parecer água e óleo. Algumas dessas músicas já vem se tornando verdadeiros clássicos, como "Bob" e "O Celular de Naná" do primeiro disco "Samba pra Burro". E foi com essas canções que fez um belo show, dando grande destaque a parte percussiva. Emocionado, não parou de lembrar como é bela sua cidade, sua cultura. Tem toda razão.

Olinda
Além do Rec-Beat, um outro festival reunia bandas com tranbalhos mais contemporâneos. Era o Cena Musical.Br, que acontecia pela segunda vez em Olinda, dessa vez reunindo alguns grupos de outros estados além dos locais. A desorganização inicial fez com que perdesse bons shows, além de eu não ter ido tanto em Olinda ocmo em outros anos. O grande problema do festival esse ano foi o lugar. Ano passado acontecia na praça da Preguiça, que além de ser mais ampla e agradável tinha um gramado que atraia, você sentava, deitava, descansava e ouvia uma série de bons shows.

Como o lugar não era tão agradável esse ano - além de ser mais paertado, ficava num lugar não tão legal - Varadouro - o festival atraiu um público menor. Só consegui na segunda-feira ver dois shows. Azougue era até interessante com mistura de samba, rock, eletrônica e outros lances. A banda seguinte, que graças a deus eu não lembro o nome, era ruim demais e só me estimulou mesmo a ir embora. Os blocos de rua de Olinda são muito mais interessantes.

A segunda-feira não era tão atraente pra mim. Queria ver o grupo Del Rey, que misturava o Mombojó com China tocando covers de Roberto Carlos, vi o final do show e é muito bom. Não tinha como não ser já que só tocam clássicos do rei Roberto Carlos, com o público cantando junto lindamente. O resto da noite não me atraia tanto, já que tinha visto há pouco o show de Black Alien, que não consegue transportar para o palco a qualidade de seu disco, e Lula Queiroga, que sinceramente não me convence. Acho mais pretensão do que qualidade e a música é uma MPB inferior ao que já foi feito pelos mestres do gênero.

Nem Cordel do Fogo Encantado eu fazia muita questão. Gosto deles, mas já vi vários desse show que eles têm apresentado e cansou. Ma sé engano, Cordel em Recife é sempre um acontecimento. Fizeram mais um daqueles shows fantásticos. Apoteótico para o maior público já registrado em um Rec Beat. Mais de 30 mil pessoas cantando e orando freneticamente. Os caras são monstruosos no palco.

Recife tem sim, o Carnaval mais diversificado. Enquanto rolava o Rec Beat na segunda, o palco do Marco Zero recebia altas doses de samba da melhor qualidade. Uma banda local abria a festa, no aguardo de duas divas do samba. Dona Ivone Lara, no alto de seus mais de 80 anos, não permitiu ninguém ficar quieto. Clássico atrás de clássico e alguns dos sambas mais fabuloso já feitos, com direito a uma sequência de sambas enredo na época que sabiam fazer isso. Muito bom, pena que fui ver outros shows e perdi Beth Carvalho, que pelo que soube foi fantástico também.

Na terça:
O Samba de Côco Raízes de Arcoverde tocou ano passado no Rec Beat,no festivalde Olinda, tinha se apresentado já no Porto Musical e sempre, sempre, conquista a todos. É um misto de uma inocência com sentimento, de vontade de mostrar sua música e valorização do que são, sem se preocupar se é antigo, folclórico, novo, "muderno", é simplesmente o que eles vivem e dá para sacar isso com o grupo em cima do palco. É mágico. Côco na música e nos pés, e nos seus tamancos de madeira, a simpatia, o carisma e a qualidade do grupo conquistam. O ritmo, a beleza e a simplicidade das músicas são de uma riqueza enorme, sem precisar de um olhar antropológico, de pesquisador, é música boa, alegre, rica e cheia de sentimento. O disco deles pela primeira vez está tendo distribuição nacional e vendendo horrores. No final do show, foram tocar atrás do palco e venderam todos os discos que tinham em questão de minutos.

Se Otto meio que inventou uma música brasileira moderna, é também de Pernambuco um dos melhores nomes surgidos ultimamente na música nacional. Junio Barreto ainda é muito desconhecido, talvez permaneça desconhecido, mas cometeu um dos melhores discos de 2004 e tem um show de altíssimo nível. Com uma voz grave, um jeito tímido de cantar e uma banda afiadíssima dando sustento a suas composições, fez um show excepecional, irretocável. Suas canções trazem um pouco de muita coisa de boa música feita no Brasil, tudo com um primoroso trabalho rítmico e bem dosados enxertos de eletrônica. Perfeita a bela versão de "A Mesma Rosa Amarela", do mestre do carnaval pernambucano Capiba e Carlos Pena Filho. "Você tem quase tudo dela/ O mesmo perfume, a mesma cor, a mesma rosa amarela/ Só não tem o meu amor./ Mas nestes dias de Carnaval/ pra mim você vai ser ela/ o mesmo perfume, a mesma cor, a mesma rosa amarela.../ Mas não sei o que será/ Quando chegar a lembrança dela/ E de você apenas restar/ a mesma rosa amarela, a mesma rosa amarela". Um lindo momento em meio ao Carnaval.

O Bonsucesso Samba Clube deixou a eletrônica de lado e assumiu um lado mais rítmico, com a percussão ganhando espaço. No palco agradam mais assim, com as músicas ganhando corpo e obtendo um resultado muito interessante da junção de dub, reggae e samba. Se houve algum erro no Rec Beat em 2005 foi a presença do grupo de Marcelo Yuka, F.U.R.T.O.. Foi constrangedor. Apesar de uma boa banda, o resultado é pífio, com um vocalista tentando lançar palavras de alta dose sócio-político, mas sem convencer. Se fosse só isso, menos mal. O som da banda pareceainda estar em formação, como se faltasse ainda muita coisa para adquirir uma sonoridade interessante. Muito fraco. Quem fechou o festival foi a quase unanimidade local, o cantor Lenine. Infelizmente, ele ainda consegue agradar a muita gente. Felizmente, para muitos e uma farsa que já estpa caindo. Farsa porque ele é apenas um cantor razoável e um compositor que deu sorte de ser descoberto na época do Mangue, porque não há nada de especial no trabalho dele. Evidente que não dá para desqualificar e dizer que é um trabalho ruim. Não é. Mas para o tanto que falamo e exaltam, é injustiça. Paciência.

Para fechar o Rec Beat,a cada dia djs se apresentavam na tenda eletrônica até de manhã cedo. E se ouviu de tudo, house, mangue beat, dance, tecno, misturas em geral, num espaço que lotava e reunia principalmente um público jovem e de classes mais baixas, numa demonstração de democracia cultural. Claro que a lotação contribuia para os roubos e brigas que rolavam no lugar, mas sem tirar o brilho da festa. A sensação do Carnaval de Recife/ Olinda é que todos se divertem de verdade, basta estar disposto. Há músicas de todos os estilos convivendo. Se ouve de tudo, se diverte com tudo, sem preconceito e como eles sempre fazem questão de ressaltar, sem cordas, sem cordão de isolamento, sem farda, sem preconceito. É por ai. A prefeitura de Recife pode ser questinada até, mas é visívelcomo o carnavalé plural e como eles adotam no slogan, Multicultural. Crianças, jovens, velhos, adultos, mulheres, homens, ricos, negros, porbres, brancos, turistas e locais se misturam,sem se saber direito quem é quem. Todo mundo com a missão de se divertir, claro que enfrentando alguns problemas, porque não dá para ser perfeito e acho até que perderia a graça. Bate uma inveja saudável de como perdemos isso em Salvador.

Ai eu lembrei do que havia lido sobre o Carnaval de Salvador no jornal A Tarde naquele dia:
"Apesar de atrair tanta gente famosa, o Cortejo Afro não conseguiu um único patrocinador. Qual a explicação? "A explicação é que esse é um bloco afro", responde o músico Arto Lindsay, um dos maiores entusiastas do Cortejo. "Nossa luta pela sobrevivência não é diferente da luta que Muzenza, Malê Debalê e até mesmo o Olodum travam todos os anos. O próprio Ilê Ayiê só vive um momento de prosperidade agora, depois de 30 anos de estrada".